quinta-feira, 28 de maio de 2009

Clara ou Gema?

Interior do Ceará. Mês de novembro. Sol causticante. Calor insuportável. Suor. Cansaço. Estrada carroçável. Poeira. Viagem a trabalho. Fusca...

Todas as condições de conforto, segurança e tranqüilidade.

Às 17:45h, ainda 20 quilômetros distante da cidade mais próxima, a luzinha do óleo começa a piscar. Não é bom sinal. O que fazer: parar ou prosseguir? Mais alguns metros, uma casa alpendrada no meio daquela caatinga. Ao lado, um açude com alguma quantidade de água.

Paro em frente. Desço do carro e grito:

- Ô de casa!

- Ô de fora! - alguém respondeu.

- Sou de bem.

- Eu também.

Aguardei um pouco à entrada. Uma figura esguia, calça de brim azul e camisa social, deslizando num chinelão de couro, chapéu de massa e óculos do tipo “se der na vista eu levo”, aproximou-se falando:

- Qual a sua graça?

- Antônio. E a sua?

- Saturnino. Vosmicê pode entrar.

Contei o incidente.

- Deite as mala aqui. Tome a cuia e vá largá esse suo no açude. Depois vamo jantá da cumida da dona Maroca. Vosmicê pernoita aqui por hoje. É de bom agrado.

Tomei banho. Refiz-me do cansaço e da murrinha do corpo. Sentamos-nos à mesa Saturnino, dona Maroca e eu. Cuscuz com leite e carne assada era a refeição. Entre uma colherada e outra, uma pitada de prosa.

- Seu Saturnino, por que esse nome? - perguntei.

- Naquele tempo era moda os pai butá o nome dos fio e das fia cum nome de praneta. Meu pai dizia qui era em homenage a saturno qui tem uns ané muito bunito - ele respondeu.

- É só Saturnino?

- Não. Saturnino dos Santos Todos. Pru mode qui eu nasci no dia de todos os santo. Lá pra baxo tem a Venusiana Estrela Dalva; aqui mais pra riba tem o cumpade Marciano Marte; e na cidade que vosmicê vai passa amenhã tem o dôtô advogado Mercúrio Cromo de Sôza. Antigamente era assim.

Terminado o jantar, a varanda nos esperava. Dona Maroca encarregou-se de lavar a louça, deixando-nos mais à vontade.

Duas cadeiras, Saturnino e eu. Puxei a conversa:

- Saturnino, alguma prosa que corre de boca em boca por essas bandas?

- Meu pai – seu Mangabêra, qui Deus o tenha num bom lugá! – me contô qui conheceu nos ido de 1900 o seu Apolinaro, esposo da dona Zefinha. Tinha pra lá de quize fio: oito macho e o resto era fême. Ele era agricutô e cumia cum a sua família do qui prantava e do qui colhia. Criava tombém umas galinha caipira pra butá ovo. Já ajudava munto na refeição das criança. Um dia na hora do armoço passô pur lá um biato véio e seu Apolinaro cunvidô ele pra armunçá. Cuma sempre, a briga cumeçô. Uns dizia: nóis qué só a crara do ovo; ôtos gritava: nóis qué só a gema; o resto quiria os ovo todo, cum crara e gema, compreto. O biato viu e ôviu tudo. Terminado o arvoroço, seu Apolinaro se levantô do chão, chamô o biato no canto e discurpô-se pelo ocurrido. Cum riso mêi incabulado foi a vez do biato chamá seu Apolinaro e dizê: taqui argumas simente de mio. Tem umas branca e umas amarela. Num canto do roçado só prante as amarela, em ôto só prante as branca. Quando eles tivé sabugado bote pra secá. Quando eles tivé seco dê pras galinha cumê. Pra metade das galinha dê só o mío amarelo; pra ôta metade, só o mío branco. Se sobrá argumas galinha dê o mío comum. Seu Apolinaro agradeceu e o biato foi simbora. O tempo passô. Foi tudo feito do jeitinho qui o hôme de Deus insinô. As galinha cumeçaro a pô. As qui tinha cumido o mío branco butava ovo só cum crara; as qui tinha cumido mío amarelo só butava ovo cum gema; e as ôta, mío cum crara e gema. Foi assim qui as danada das briga na hora das refeição se acabaro.
E os fio e as fia de seu Apolinaro tá tudim criado.

Seu Saturnino levantou-se, cumprimentou-me com uma boa noite e um até amanhã. Naquela noite quase não dormi. Cochilei pensando apenas:

- Ah! Se esse beato passasse lá em casa!

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